Eu lhes apresento: O medo.

       



      Sentia-se como um anjo caído. Sentiu aquela raiva tomar conta do seu ser, sentia no fundo da sua alma. Invadia o fluxo do seu sangue, impetrando-se no mais profundo dos seus ossos, contendo-se para não explodir em meio àquela multidão. Era uma tarde cinza. Fria. Como se tudo colaborasse para o seu sofrimento. O céu estava escuro, sentia um abismo abaixo de seus pés. A melancolia tomava conta do ambiente, como uma doença que se alastra e devasta tudo a sua volta. Por que isso acontecera a ele? Por que o mundo parecia estar contra aquele pobre homem? À medida que sua cabeça enchia-se de perguntas, seu ódio tomava proporções devastadora ao seu espírito. Tomado pela raiva, sentindo-se um estranho indesejado naquele mundo de homens corrompidos, deu início a uma série de eventos malignos. "E que Deus me perdoe." dizia a si mesmo. Sua alma já não poderia ser bondosa, não poderia ser justo num mundo em que ele julgava ser injusto.
       Naquela mesma tarde, à luz do crepúsculo, enquanto caminhava às pressas a caminho de sua casa, Eleonora, uma jovem linda de cabelos castanhos, caminhava a passos largos para que chegasse mais cedo em casa. O céu ia escurecendo e a tempestade se aproximava, precisava chegar rápido para que não se molhasse, pois estava sem guarda chuva. Saíra cedo de casa e o tempo estava sereno, calmo. Cruzou a Avenida sentido ao bairro em que residia. Sempre fazia o mesmo trajeto durante muito tempo e conhecia bem todas as ruas até a chegada a sua casa. Enquanto descia ao fim da Avenida, cruzou alguns jovens numa rodinha, parecia um grupo punk, mas não tinha certeza. Estavam com um rádio e fumando alguns cigarros. O cheiro de maconha pairava no ar, um forte odor era facilmente percebido àquela distância. Decidiu cruzar a rua para que não passasse por entre aqueles rapazes. A medida que passava por eles, pode sentir aquele cheiro horrível e ouvir o som alto poluindo a sonoridade do local. Tocava ‘’ Flat Earth Society’’ da banda Bad Religion. Saindo da Avenida, decidiu pegar atalho por uma ruela para sua casa, já podia sentir os primeiros pingos caindo sob sua cabeça. Passando por entre os carros e o pouco espaço que lhe restara, avistou um rapaz, não muito velho, deveria ter uns 25 a 30 anos de idade, de casaco sobretudo e boina marrom, lendo um jornal encostado no muro. Com um dos pés encostado na parede, parecia estar totalmente desconectado com o mundo, perdido entre as palavras daquele jornal. Ela passa por ele com certo receio, mesmo assim decide aumentar as passadas. Ao passar por, ele a cumprimenta com um ‘‘boa noite’’. Assustada, derruba a sacola que carregava. Ela para, olha para ele sem jeito e diz ‘’boa noite’’ em resposta. Ele a ajuda a pegar suas coisas, sorrindo cordialmente. Ela se levanta, agradecendo com a cabeça, volta a caminho do seu destino. De repente, sente o forte odor de Éter invadindo seu nariz e sua boca, tenta desesperadamente se livrar do estranho que a mantém agarrada com o pano em seu nariz e boca. Sente a tontura tomar conta da sua cabeça, já não tem mais forças para ficar de pé. Tomada pelo desespero, da uma última olhada em volta e tudo que pôde enxergar foi um sobretudo marrom e nada mais.
       Horas depois...
       Eleonora acorda horas depois, está deitada sobre uma mesa de alumínio. Sente o seu corpo gelado arrepiar-se devido ao frio daquela sala. Está envolta por plásticos em seu corpo todo, de modo que não consegue escapar daquela situação agonizante. Seu rosto é a única parte cuja qual não há plástico, apenas sua testa está presa por uma espécie de cinto de um marrom envelhecido. Sente o terror tomar conta do seu ser, o medo é visível em seus olhos. Olha em volta na esperança de encontrar alguém ou alguma coisa para conseguir sair dali. Percebe que esta numa sala que mais se parece com o que um dia foi um escritório cirúrgico. À esquerda da sala, vê a figura de um homem com um jaleco. Ele está de costas, está arrumando algumas ferramentas cirúrgicas. Ele levanta um pequeno bisturi e o limpa com um lenço levemente umedecido por álcool. Ao perceber que Eleonora acordara, volta-se para ela com um olhar maligno e se aproxima ainda com o bisturi na mão. Apavorada, Eleonora começa a gritar, seus olhos tornaram-se um buraco negro, o medo já estava fluindo em seu sangue, tomando conta da sua alma. A angústia que aquele momento causava a ela, era demais para qualquer outra pessoa no mundo suportar. Ela não conseguia suportar. Não poderia. O homem aproxima-se de seu rosto, delicadamente colocando o bisturi no canto inferior esquerdo de sua boca, começa a falar.
—— Há muito tenho esperado por esse momento, uma chance de poder libertar a fera dentro de mim. Em meio a uma sociedade desprezível onde todos julgam. Todos no seu mundinho fechado, sem se importar com os outros, falam sobre benevolência e simplesmente ignoram os necessitados quando estes pobres coitados pedem dinheiro abaixo de seus narizes. Todos precisam de um motivo para ser bom, e eu vos trarei o medo. Sim minha cara, o medo faz as pessoas mudarem. É o que une a ética e a moral. Características que fazem do ser humano, pessoas mais dignas de viver, pessoas mais racionais e menos soberbas. O mundo desde que se conhece por mundo, viveu pelo medo. Os primeiros da nossa espécie, com medo dos grandes animais, os romanos com medo de seus imperadores, a idade média que temia o poderio da igreja, os tempos modernos que temem a criminalidade e seu governo opressor. Ao contrário do que muitos pensam, o medo purifica. O medo por si só, é uma fonte harmoniosa com a finalidade de trazer a ordem, trazer o que é bom, unir pessoas, capaz de criar uma irmandade sem igual, jamais vistas. Eu não sou diferente dos que muitos pensarão; um monstro. Eu sou perfeito, sou um instrumento de correção de uma humanidade perdida, sou parte de uma história que nunca se encerra. —— Ele a olha nos olhos e pode perceber o medo contaminando a sua essência, seus olhos castanhos claro, arregalados pelo medo. Ela fica inquieta, não diz uma palavra. Com medo de que possa acontecer a ela alguma coisa, caso dissesse algo. Agora nada mais importa nenhuma palavra ou qualquer outra ação não seria capaz de brecar aquela vontade sobre-humana daquele homem de dar continuidade ao que se seguiria.
       Ele acaricia seu rosto como um pai que acaricia sua filha em despedida. Aproxima seu rosto próximo ao dela e a beija levemente na testa suada pelo cinto e pelo medo e passa o bisturi pela sua bochecha, fazendo movimentos leves como se a acaricia-se com a pequena ferramenta. Para a esquerda depois para a direita, a delicadeza com que se movia sua mão dava a impressão de estar conduzindo uma orquestra sinfônica. Tão sublime. De repente para e retorna a sua mesa. Deixa o pequeno bisturi na bancada e pega um pequeno alicate e uma vasilha do tamanho de uma mão de uma criança. Vai em direção à garota. Segura seu rosto, forçando-a a abrir a boca, e então coloca o alicate sobre um de seus dentes — o canino inferior direito — e pressionando a ferramenta com firmeza, extrai o dente de Eleonora que grita, pela dor e pelo medo, desesperadamente. Coloca o dente branco como o gelo na vasilha... Então se inicia o show de terror. Calma e friamente o homem vai retirando dente por dente de Eleonora que desmaia de dor, e vai guardando. Ainda com a garota inconsciente ele vai até sua mesa, deixa o pequeno alicate sob a mesa ainda sujo de sangue e pequenos pedaços de gengiva e o coloca dentro de uma pequena bacia, posicionada ao canto da sua mesa de tortura, junto com a vasilha contendo os dentes. Estica sua luva de látex para ajeitá-la melhor nas mãos e pega o bisturi. Chega na mesa onde se encontra aquela pobre mulher, e abrindo a sua boca ainda mais, segura a sua língua e a estica com certa força. A menina acorda, e geme de dor. Já não tem forças para gritar ou até mesmo pedir por socorro. Seria desnecessário, não havia ninguém por perto. Estava num verdadeiro inferno e de lá não sairia viva. Ele avança o bisturi até a sua língua e começa a cortá-la com certa firmeza. O corte é, de certo modo, de uma beleza cirúrgica inigualável. Após retirar sua língua e a posiciona ao lado da cabeça de Eleonora. Ela volta a desmaiar, por tantos motivos — dor, medo, êxtase — Sua boca, já não se assemelha a uma boca humana. Um buraco enorme, negro e horrível é o que resta no que antes havia um lindo sorriso. Em seguida, o homem desprende a cinta que segurava a testa de Eleonora e a coloca no chão. Pressiona o bisturi na testa, entre o couro cabeludo e o começo do rosto dela e começa, delicadamente, a cortá-lo. Faz o corte simetricamente em torno do seu rosto. Com um cuidado extremo, retira a pele de sua face. Uma mistura de sangue e carne se desprende da face de Eleonora. O que era um rosto torna-se uma imagem penosa do retrato da própria morte. Ele posiciona a pele do rosto do lado do rosto de Eleonora, ao lado de onde está a sua língua. Só o que resta é um corpo moribundo e asqueroso. Eleonora está morta.
       O momento de terror absoluto tem seu fim. O homem retira seu uniforme de trabalho e pacientemente limpa suas ferramentas. Já não há mais nada que possa ser feito, seu trabalho, sua obra, está terminado. Ademais, ele sente um enorme vazio no peito que não consegue explicar a si mesmo o que é. Seu corpo torna-se frio, assim como seu coração já é, há muito tempo. Guarda suas ferramentas e vai pra casa. Um novo começo na história teve início. E por muito tempo, esse será o enredo de um mundo caótico que ao olhar dele, é a purificação da humanidade.

—— Eu sou o senhor de mim mesmo, sou tudo e o nada, sou o bem e o mal. Eu, e somente eu, devo acabar com essa doença que se alastra como uma peste negra, tal qual evitam ao máximo, mas que nem ao menos sabem que já estão infectados. Pobres coitados, não conseguem lidar nem com eles mesmos. Precisam de ajuda. Vou lhes mostrar o medo, vou lhes trazer a paz devidamente pura. Reconhecerão novamente os valores que o ser humano há muito perdeu. Coisas como amor ao próximo, benevolência, piedade, perdão, gratidão serão devolvido a vocês. Eu sou o correto, sou o certo, sou o justo. Eu sou perfeito. 

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